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Patiuba

Beatriz de Mello Beisiegel

Há vinte anos desço para beber e pegar água nesse riacho. Atravesso a ponte, desço pela trilhinha, chego ao rio e olho sempre rio acima, e lá estava uma árvore. Uma árvore pequena e  torta, nascendo no barranco e se ramificando para alcançar a luz sobre o rio.  Nada de memorável nela, mas por algum motivo tenho nítida na memória a imagem desta árvore e a certeza de que era necessário subir um pouco o rio para chegar a ela.

O tempo foi passando e alguma hora não era mais preciso subir o rio para chegar à árvore, ela estava em frente à prainha onde pego água. Então comecei a chamá-la de Patiuba, a árvore andante. Patiubas são palmeiras espinhentas e cheias de raízes da Amazônia. Segundo meu colega Elildo, que sabe tudo sobre a Amazônia, as raízes vão morrendo e sendo substituídas por outras que nascem em locais levemente diferentes, e ao longo de imensos períodos de raízes mudando de lugar a árvore acaba mudando de lugar também, e patiuba significa “árvore que anda”. Lindo, mas anos depois que o Elildo me contou isto alguém menos mágico me disse que isto é só um mito, porque as raízes parecem ser tantas pernas. Bom, estas são as patiubas originais, na Amazônia.

A minha Patiuba - uma amiga a mais no mato, faz tanta diferença dar nomes - converso com ela toda vez que chego a este riacho e vejo que ela está minimamente mais rio abaixo, hoje já tive que olhar rio abaixo, para o lado da ponte, para conversar com ela e explicar pela milésima vez que veja, Patiuba, você NÃO VAI conseguir passar por baixo da ponte. Pode ir descendo e descendo o rio, mas e quando chegar lá o que vai fazer com seus galhos?

Patiuba não se preocupa com isto, segue descendo o rio alguns centímetros por ano. Quando era uma sementinha, junto com dezenas de irmãs dentro de uma mancha de frutos no chão da floresta lá pelos lados da cabeceira do riacho, foi comida por uma anta que foi descendo o rio e colocando sementes para germinar em vários banheiros. Patiuba tem irmãs que germinaram rio abaixo, perto do Vale, e com paciência arbórea pretende chegar lá para conhecê-las em três ou quatro séculos.  A ponte? Quem sabe por quantos anos a ponte ainda estará lá? Essa estrada foi aberta no fim da ditadura militar, então tem, digamos, 35 anos. Talvez Patiuba tenha sido plântula em um tempo em que ainda não havia estrada, um brotinho na regeneração daquela clareira.  Talvez, na sua lenta consciência de árvore, ainda não tenha visto a ponte. Talvez não precise chegar a ver. Ou talvez já tenha visto e saiba que não precisa se preocupar. O mato cresce rápido sobre as estradas, aquela ponte já foi refeita diversas vezes desde que eu estou aqui, e tem tanta coisa que pode segurar a sede de avanço destruidor da nossa espécie!! Talvez um vírus, talvez uma guerra, Patiuba ainda tem vários anos antes de chegar à ponte. Na Amazônia e em Intervales é comum  andar por estradas antigas onde atualmente é difícil achar a marca do leito. Talvez Patiuba já saiba,  e por isto desce o rio tão sossegada, tão determinada, que um dia todas as marcas da nossa espécie no planeta serão como aquelas estradas.

Patiuba: Bem-vindo
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