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Sossego

Beatriz de Mello Beisiegel

Essa é a história do Sossego, o quati, da época em que eu estudava quatis. Ainda existiam muitos grupos de quatis no mato, tempo feliz. Entre 2001 e 2003 habituei um grupo, que chamei de Grupo da Jaca, e tentava passar o máximo de tempo observando quaisquer quatis que encontrasse.

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Você, que lê, precisa saber como são os quatis: olha as fotos e imagina estas coisas absurdas saídas de uma imaginação de um criador hipotético que acordou preguiçoso um dia, sentindo uma estrelinha na cabeça, e resolveu que não estava a fim de fazer nada sério, puxou um pouco o nariz de um bicho para ficar BEM comprido e meio borrachudo, inventou um sistema social gozado, pôs orelhas redondas de urso e muitas, MUITAS pulgas! Assim os caras passam o tempo todo se coçando. Os machos a partir de dois anos são solitários e só se juntam aos grupos em Agosto, na época do acasalamento. Eu acho que durante todo o outono e começo do inverno os machos ficam pensando puxa, como é solitária esta vida de macho. Que saudade de andar com a turma! Daí chega Agosto, oba, os machos entram nos grupos para acasalar e é aquela brigalheira : todos os machos ficam arrebentados e mordidos. Em Setembro acho que os machos estão absolutamente felizes e relaxados, metabolizando a ressaca emocional das batalhas e pensando como é magnífica esta vida solitária. E quando encontram uma árvore cheia de frutos se plantam ali e criam raízes, felizes por não terem que sair atrás de uma nariguda apressadinha que quer forragear nas bromélias que tem atrás daquele morro lá longe. Foi um bicho destes que encontrei. Acho que devia ser um macho de pouco menos de três anos, saído de um dos grupos meio habituados no fim do ano passado, pois ele com certeza me conhecia. Sabia que eu era uma  espécie nova, esquisita, que andava assolando o mato: grudenta,  chata, muito chata, muito barulhenta, mas completamente inofensiva.

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Imagina então que você é este cara, está forrageando no chão em um dos lugares mais lindos do mato, em um rio com pedras castanhas e verdes,  do lado de uma Myrtaceae cheia de frutos maduros que ainda dão para muitos dias, e ouve um monstrengo se aproximando pela água: CHLOF Splach clong cha cha cha. Sobe em uma árvore e fica congelado a cerca de um metro de altura, bem quietinho, esperando o monstro passar sem te ver, e em vez disto você vê com o rabo do olho que o monstro está ali, parado a poucos metros de distância de você e evidentemente olhando direto para você, e você percebe que é aquela espécie estranha que você viu ou da qual ouviu falar. Como ela é inofensiva, você sobe para uma forquilha a três metros de altura, na fuça da monstrenga, e se instala para observá-la melhor, colocado um cotovelo marrom peludo de cada lado do toco que é a forquilha onde você está espalhado. A monstrenga, entretanto, não faz nada, só te olha, e te dá um sono... (os quatis estão sempre no limiar de uma soneca) você encosta a cara no toco para dormir.

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Foi isto que aconteceu., e eu estupefata com a placidez do bicho fui tirar a máquina para tirar fotos dele dormindo tão pertinho, fazendo uma barulheira com os vários plásticos nos quais ela estava embrulhada, ele acordou e pensou, puxa, a monstrenga é muito chata mesmo! Barulhenta! Não me deixa dormir! E resolveu ir embora, e como sabia que eu era absolutamente inofensiva, desceu da árvore na minha cara, quase ao alcance de um pulo, e foi embora PELO CHÃO, DE COSTAS PARA MIM, SEM SE DIGNAR A APRESSAR O PASSO!! E lógico que o perdi de vista em poucos segundos, como acontece com os bichos que ficam invisíveis no chão.

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Eu saí deste encontro no maior estado de NÃO SEI que já senti em relação a estes narigudos. E não consigo imaginar outra explicação para o que vi além da história acima. Este encontro me provou definitivamente que a mente dos animais é tão consciente, presente, cheia e variada como a nossa. Depois encontrei o Sossego, nome óbvio deste macho, mais duas vezes exatamente no mesmo lugar, e ele passou a me considerar definitivamente uma pentelha, mas nunca demonstrou o menor medo de mim, chegando a forragear no chão a poucos metros de mim.

Sossego: Bem-vindo
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